Trabalhadores do Patrimônio temem incorporação do Iphan ao Turismo

Política Nacional implantada em abril por Bolsonaro atribui à pasta de Marcelo Álvaro Antônio responsabilidades do Iphan. Especialistas na área criticam e ressaltam que conservação só pode ser exercida por corpo técnico qualificado 

Trabalhadores do Patrimônio temem incorporação do Iphan ao Turismo

Em audiência pública em defesa do patrimônio brasileiro realizada na quarta-feira, 23, convocada pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, profissionais experientes em políticas patrimoniais criticaram a Política Nacional de Gestão Turística do Patrimônio Mundial, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro em abril deste ano. Além dos cortes orçamentários que assolam diversas pastas, um dos pontos que mais preocupa os especialistas é a possível incorporação do Iphan pelo Ministério do Turismo, chefiado atualmente por Marcelo Álvaro Antônio, investigado no caso de candidaturas-laranja do PSL.

Márcia Genésia de Sant’Anna, servidora do Iphan há 27 anos, membro do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural e ex-Diretora do Patrimônio Imaterial do Instituto, explicou que o turismo é uma atividade importante e que deve, sim, se relacionar com o patrimônio. “Mas isso não significa de forma alguma que o patrimônio deve se tornar um mero instrumento do turismo”, ponderou. 

“Não se pode suplantar a função social do patrimônio. O Brasil vem tentando desenvolver um turismo de massa desde os anos 1960, com a criação da Embratur, mas até hoje os números estão estagnados, inclusive porque as questões que deveriam ser atacadas para desenvolver melhor o turismo no País não são atacadas. O turismo luta há mais de 40 anos para se desenvolver. Isso tem um impacto grande para o patrimônio”, declarou.

Para Jurema de Sousa Machado, Presidenta do Iphan entre os anos de 2012 e 2016 e Coordenadora do Setor de Cultura da Unesco no Brasil de 2002 a 2012, não é possível conceber uma relação de subserviência patrimonial a uma política de turismo. “Não só aqui como em nenhum lugar do mundo. Nos países em que existe aproximação entre patrimônio e turismo, não existe subserviência”, testemunhou.

Também crítico ao cenário que se desenha e que ameaça a preservação patrimonial do País, Flávio de Lemos Carsalade, vice-presidente do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos) e braço assessor da Unesco para o Patrimônio Mundial, analisou as investidas do governo federal como um alinhamento político que atrela patrimônio à renda e à circulação financeira. 

“Cultura é um modo de compreender o mundo e de se relacionar com o mundo. A gente entende o mundo pela cultura, por isso mesmo ela nos dá referência e nos situa nesse mundo. Diante disso, os patrimônios culturais são as identidades das comunidades e da memória através dos tempos, o que traz uma função social de grande importância, de cidadania”, explicou.

Necessidade de corpo técnico

Para uma política eficiente de preservação de memória e de valorização de identidades plurais que participaram da construção da nação brasileira, os trabalhadores da área ressaltaram que é imprescindível a existência de um corpo técnico qualificado e estável. Apesar de parecer uma afirmação óbvia, o governo federal tem desrespeitado as diretrizes do Decreto 9.727/2019, que dispõe sobre a compatibilidade do perfil do profissional indicado a cargos de chefia.

Os palestrantes da audiência pública recordaram casos de nomeação de superintendentes regionais sem formação na área patrimonial e sem experiência profissional adequada para os cargos. O mais recente desses casos foi a indicação e exoneração quase imediada do superintendente de Minas Gerais, estado que detém o maior número de bens tombados pela União. Empossado pelo ministro Osmar Terra, o cinegrafista Jeyson Dias Cabral da Silva pediu demissão poucas horas após assumir o cargo. De acordo com os palestrantes, o recém-nomeado se assustou com a quantidade de trabalho e com a qualidade dos servidores efetivos da casa.

Carsalade ressaltou a importância de uma gestão técnica. “Não dá para trabalhar com um bando de neófitos. Os gestores devem ter conhecimento aprofundado e capacidade de articulação. É um perfil complexo que exige experiência e expertise”, afirmou. Márcia Sant’Anna lembrou que sempre houve prejuízo para os brasileiros quando foram nomeadas pessoas sem as qualificações necessárias. A diferença do passado para a atualidade, segundo Sant’Anna, é que “talvez nunca na história do Iphan houve um ataque tão profundo à competência institucional”. “Nunca vimos um ataque dessa forma, tão pouco criteriosa e violenta, de desconsideração do trabalho que a instituição realiza”, declarou.

Cortes e silenciamento

O Ministério da Cultura foi extinto assim que Bolsonaro assumiu a Presidência da República, em janeiro deste ano. Transformada em secretaria do Ministério de Cidadania, encabeçado por Osmar Terra, que não tem comprometimento com a pauta, a Cultura enfrenta tentativas de invisibilização e silenciamento. Para Jurema de Sousa Machado, este “gesto administrativo” não tem nada de administrativo. “É uma tentativa de fazer calar políticas”, alertou. A deputada federal requerente da audiência, Áurea Carolina (Psol-MG), observou que o cancelamento de editais de cultura, além de atitudes de censura, cooperam na intenção de invisibilizar a pasta.

Veterana no órgão, a servidora Márcia Sant’Anna ressaltou serem necessários investimentos públicos para preservação do patrimônio cultural. “Exige dinheiro, deslocamento e atenção de um quadro de servidores qualificado”. Atualmente o Iphan tem orçamento de 0,2%, segundo Flávio Carsalade, o que está longe de ser suficiente para atender as demandas sociais. Presidente da Comissão de Cultura na Câmara, a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) reforçou que o Iphan tem um papel político fundamental. “Nós temos é que ir para as ruas e fazer política, se não vamos aceitar tudo isso”, finalizou.

Fonte: Condsef/Fenadsef

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