Autonomia do BC ou quimera do quarto Poder?

Por José Serra 11/04/2024
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 65/2023 estabelece
diversas mudanças na forma de operação administrativa da
autoridade monetária nacional. Mais expressiva é a proposta de
reorganização dos poderes decisórios em torno da matéria
econômica. Não há dúvida de que a PEC não toca nas principais
questões da gestão monetária e, o que é pior, cria novos
problemas.
A primeira grande questão é o financiamento do Banco Central (BC)
pela senhoriagem. O tema é árido, mas, de forma muito
simplificada, senhoriagem é a receita propiciada pelo poder que o
Estado detém como emissor da moeda nacional, seja porque a
moeda que circula na economia tem custo de produção menor que
seu valor de face, seja porque o BC não paga juros às pessoas que
detêm moeda corrente em suas mãos.
No percurso da reorganização das contas fiscais e financeiras do
País, o resultado do Banco Central, do qual faz parte a
senhoriagem, foi direcionado para quitar dívidas do Tesouro
Nacional, operando como um freio à expansão da dívida pública.
Em suas justificativas, a PEC explicita o intento, pouco visível no
texto legal, de utilizar a senhoriagem para bancar despesas
correntes e de capital da autoridade monetária. Trata-se de um
considerável retrocesso em nosso ordenamento fiscal. Nada pode
legitimar que um conjunto de servidores públicos, incluindo diretoria,
tenha o direito de financiar seus proventos com uma receita
diretamente emanada do poder emissor do Estado.
Não vai aí nenhum óbice ao servidor federal que conduz uma
instituição tão fundamental ao País. Estou certo de que nem o
quadro técnico do Banco Central está de acordo com isso. Mas há
formas muito superiores de garantir o bom funcionamento da
instituição do que utilizar a senhoriagem.
Afastado o absurdo, vale analisar o que há de mais substantivo na
PEC. A alteração de Autarquia Especial para Empresa Pública
parece-me um equívoco até para os objetivos do autor da proposta.

Se a empresa pública for considerada dependente do Orçamento-
Geral da União, as restrições financeiras e administrativa serão
maiores do que as atuais.
Há, no entanto, uma questão muito mais profunda no texto da
Proposta de Emenda Constitucional: a modificação de todo o
ordenamento institucional vigente. A PEC 65/2023 desvincula,
administrativa e hierarquicamente, o Banco Central de qualquer
ministério ou órgão do Executivo Federal, extinguindo todas as
relações entre o Poder Executivo e o Banco Central.
Se o texto proposto na PEC elimina o papel coordenador do
Ministério da Fazenda, o atual Conselho Monetário Nacional (CMN)
parece fadado à extinção. Perde-se qualquer possibilidade de
interação entre a área econômica do Poder Executivo e as políticas
monetária, cambial e financeira. A implementação desta diretiva, a
ser conduzida em lei complementar, sepultará de vez o conceito de
política econômica.
Em verdade, há que notar que, durante o governo Lula, o Banco
Central e o Ministério da Fazenda não fizeram políticas harmônicas,
para dizer o mínimo. A insistência do Banco Central em manter a
taxa real de juros em patamar tão elevado por meses, contra a
posição da Fazenda, mostra o quanto a política econômica foi
fragmentada.
O atual presidente da República também terá de se conformar com
ser um “comum do povo” em relação ao BC, dado que o Congresso
Nacional passa a supervisionar a autonomia da autoridade
monetária nacional em todas as suas dimensões. Ao mesmo tempo,
o Tribunal de Contas da União (TCU) passa a ter o papel de
controle externo e o próprio Banco Central, de controle interno.
Na prática, a PEC 65/2023 cria um quarto Poder e esse é o objetivo
real da proposta. A mudança administrativa, para empresa pública,
é mero jogo de cena, porque a questão central é levar ao limite a
tão sonhada independência da política monetária.
O que causa perplexidade é que a independência do Banco Central
foi comprovada no último ano. Mesmo utilizando sua autonomia de
forma questionável, porque manteve uma taxa de juros
estratosférica sem explicar as razões, o BC ganhou a queda de
braço com o presidente da República e com o ministro Fernando

Haddad. Vale frisar que ficou evidenciada a capacidade do BC para
fazer valer seu poder no ponto central da política monetária: a
gestão da taxa Selic.
Então, qual a razão de levar a autonomia ao limite? Devemos
lembrar que o BC brasileiro tem funções mais abrangentes que a
maioria dos bancos centrais. Estão sob seu comando tanto a
gestão cambial quanto o regramento e a fiscalização de todo o
sistema financeiro. É poder demais. E concentrado numa só
instituição. Não pode dar em boa coisa.
Por fim, devemos lembrar que o Brasil precisa, sim, de política
econômica. Moeda, câmbio e fiscal são componentes indissociáveis
de uma política concertada para o desenvolvimento, especialmente
numa economia mundial tão complexa e competitiva. O Brasil não
merece perder sua capacidade de fazer políticas em nome de uma
quimera.
Artigo publicado em:
estadao.com.br/opiniao/jose-serra/autonomia-do-bc-ou-quimera-
do-quarto-poder/

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