Como funciona a estabilidade do servidor público e por que ela existe
Bruno Lupion 28 Jun 2016
Servidores públicos contratados por concurso no Brasil têm estabilidade: só podem ser demitidos após um processo disciplinar. O desligamento ocorre se for comprovada alguma infração grave, como abandonar o trabalho ou receber propina. O servidor tem direito a ampla defesa, a decisão é tomada por um comitê disciplinar e ao final do processo ele pode recorrer à Justiça.
A estabilidade é um direito dos servidores garantido na Constituição de 1988. O objetivo é evitar que os funcionários sejam demitidos sempre que um novo governante é eleito, proteger os servidores de represálias em casos que afetem interesses e garantir que a máquina do Estado funcione de maneira constante. É adotado, em maior ou menor escala, na maioria dos países.
No âmbito federal, há 1.013.082 servidores com estabilidade, segundo o último boletim de pessoal do Ministério do Planejamento. Estão nesse universo todos os funcionários aprovados por concurso e submetidos ao estatuto do servidor público — há outros 67.353 contratados sob o mesmo regime dos trabalhadores da iniciativa privada nas empresas públicas e sociedades de economia mista, sem estabilidade.
O nome e o motivo dos servidores federais expulsos ou com aposentadoria cassada após processo disciplinar é divulgado no Portal da Transparência. Em 2015, 520 servidores foram punidos dessa forma. O número permanece estável desde 2010.
O tamanho da folha de pagamento#
No governo federal, o gasto com pessoal está abaixo do limite estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, de 50% da receita líquida (toda a arrecadação, descontadas as transferência por repartição de receita a Estados e municípios) — o que não alivia a crise orçamentária hoje enfrentada pelo país.
Nos Estados e municípios, o limite de gasto com pessoal é de 60% da receita líquida. Quando essa rubrica ultrapassa 57% da receita, os governadores ficam proibidos de ampliar gastos com pessoal, situação de 15 das 27 unidades da Federação em 2015, segundo o Tesouro Nacional.
Os servidores públicos no Brasil correspondem a 10% da força de trabalho total do país, segundo dados da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) divulgados pela revista “Economist”. Proporcionalmente, é metade do que a França emprega e um terço do que a Dinamarca.
Estabilidade e crise fiscal#
Há pouco espaço de manobra para um governante demitir servidores com o intuito de cortar gastos. Um dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal autoriza o governo a reduzir a jornada e os salários dos servidores se o gasto com folha de pagamento ultrapassar o limite legal, mas sua eficácia foi suspensa de forma liminar pelo Supremo Tribunal Federal, e a Corte ainda não tomou uma decisão definitiva.
Outra forma de demitir servidores para se adequar ao limite de gastos com folha de pagamento está prevista na Constituição, mas tem pouca chance de se efetivar. Antes de ser autorizado a exonerar funcionários estáveis, o governo deve, primeiro, reduzir em 20% as despesas com funcionários de confiança, o que é possível fazer, e na sequência demitir todos os servidores não estáveis — decisão muito difícil, pois inviabilizaria áreas do governo como a educação básica, onde costumam atuar também professores não concursados.
O economista Bernard Appy, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda entre 2003 e 2009 e diretor do Centro de Cidadania Fiscal, defende novas regras que permitam a demissão de servidores para economizar recursos.
“No Brasil esse assunto se tornou um tabu, mas a regra precisa ser revista. Não faz sentido que o trabalhador do setor privado possa ser demitido quando há uma crise e o do setor público, não”, diz ele ao Nexo.
Appy ressalva que a demissão, nesses casos, deveria ser vinculada a critérios objetivos, em setores com ociosidade de mão de obra, de forma a impedir arbitrariedades. O corte seria definido, por exemplo, por prova de seleção, área de atuação ou tempo de serviço, com garantias para que o servidor desligado ganhasse uma indenização e incorporasse os benefícios da previdência pública proporcionais ao tempo em que contribuiu. “Seriam necessárias regras absolutamente impessoais, não daria para fazer isso por meio de avaliações de desempenho com algum componente subjetivo”, diz.
Oton Pereira Neves, secretário-geral do Sindsep-DF (Sindicado dos Servidores Públicos Federais do DF), é contra mudar a lei para facilitar a demissão de servidores com o objetivo de cortar gastos. Ele afirma que, em vez de discutir a redução do tamanho do Estado, o país deveria debater uma moratória no pagamento de juros da dívida pública.
“O reajuste dos servidores federais [custo de R$ 67 bilhões até 2018], tão criticado pela mídia, equivale a menos de quatro meses de pagamento de juros da dívida pública”, diz ele ao Nexo. Em 2015, o governo desembolsou R$ 367 bilhões com o pagamento de juros. Neves defende que todos os funcionários, da iniciativa pública e privada, deveriam ter direito a alguma forma de estabilidade no emprego.
A professora Alketa Peci, da Ebape/FGV (Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas), avalia que o Estado brasileiro cresceu mais do que devia, mas diz que a solução não passa por mudanças na estabilidade do servidor, e sim por reformas em concursos, salários e estruturas das carreiras.
Medo de demissão e eficiência#
O debate sobre a estabilidade no serviço público também está ligado à eficiência da burocracia. A neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel levantou essa crítica em maio, quando trocou o Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) pela Universidade Vanderbilt, em Nashville (EUA). Em entrevista ao jornal “Folha de S.Paulo”, ela disse que a estabilidade irrestrita dos professores de universidades públicas desestimula a competição e a inovação.
Por lei, o servidor público deve exercer seu cargo com zelo e cumprir as ordens superiores. Como os critérios são subjetivos e o processo administrativo disciplinar pode ser longo e desgastante, há casos em que o chefe opta por não pedir a exoneração do funcionário.
“Algumas chefias, para não enfrentarem a situação, simplesmente ignoram o caso, com preguiça”, diz Neves, do Sindsep-DF. Para ele, quando isso ocorre há negligência do chefe. “Muitas chefias, que deveriam dar o exemplo, falham nesse aspecto”, afirma. Mas ele defende o modelo em vigor, que avalia a expulsão de servidores por meio de um colegiado, após processo administrativo.
No caso de faltas excessivas ao trabalho, o critério é objetivo. O servidor pode ser expulso por abandono de cargo (ausência intencional por mais de 30 dias consecutivos) ou inassiduidade habitual (faltar ao trabalho de forma injustificada por 60 dias aleatórios em um ano).
O secretário-geral do sindicado do servidores federais não acredita que seja possível aumentar a eficiência no governo por meio da redução da estabilidade do servidor. Para ele, esse objetivo poderia ser alcançado com ajustes na estrutura das carreiras.
A professora Alketa Peci, da Ebape/FGV, sugere medidas pontuais para melhorar a eficiência do serviço público, como reduzir o salário inicial de carreiras da elite do funcionalismo, para que o servidor se sinta estimulado a ser promovido até chegar à remuneração final, e equilibrar o salário de servidores que realizam funções semelhantes no mesmo órgão. “No INSS, por exemplo, há o auditor e o analista. Duas carreiras estáveis, aprovados mediante concurso, mas com salários muito desiguais”, diz.
Para o economista Bernard Appy, reduzir a estabilidade do servidor abriria um maior espaço para exigir eficiência na máquina, desde que os cortes fossem feitos com o cuidado de não se tornarem um instrumento de pressão política. “É muito difícil colocar esse debate”, diz. Ele pondera, contudo, que a discussão sobre a estabilidade é mais relevante do ponto de vista da economia de recursos do que sob a ótica da eficiência da máquina pública.
Mudar a estrutura das carreiras de servidores depende de alterações legislativas e é praticamente inviável alterar a remuneração de quem já está no serviço público. Reformas nesse setor seriam mais viáveis com efeitos no futuro, para os novos servidores — mesmo assim, dependeriam de muita vontade política para enfrentar a pressão de corporações organizadas.
Fonte: Nexo Jornal