36 anos da CF: ordem do ajuste fiscal altera o produto da desigualdade

PEC 65, politicas fiscal e monetária e conflito distributivo

Élida Graziane Pinto – 1 de outubro de 2024

Diferentemente da característica da comutatividade que torna indistinta e, por isso, neutra a ordem dos fatores em uma operação matemática de multiplicação, a identificação sequencial das matérias que serão alvo de ajuste fiscal não produz resultados indiferentes a eventuais trocas de posição.

Na seara orçamentário-financeira, a ordem dos fatores altera o produto, porque, a depender de como ela é disposta, acirra a desigualdade (aqui observada em termos de concentração de renda no topo), a qual já é tão crônica em nosso país. Marcelo Medeiros, em bela entrevista concedida à jornalista Adriana Fernandes para a Folha de S. Paulo, já avisava que “é mais fácil derrubar, tirar dinheiro de pobre, do que tirar dinheiro de rico”.

Para Medeiros, é preciso cautela com as agendas de rever os pisos em saúde e educação e de desindexar o piso dos benefícios da previdência e da assistência social em relação ao salário mínimo, na medida em que:

“Economizar dinheiro com pobre é a última coisa que o Estado brasileiro deve fazer. O pobre é quem mais precisa de assistência. O Brasil tem muito lugar para economizar dinheiro antes de economizar com pobre. É óbvio que é preciso aumentar a arrecadação.

É impossível regular o lado fiscal só pelo lado do gasto. É irrealista quem estiver propondo isso. É preciso discutir seriamente como aumentar a arrecadação para não ter que avançar sobre a assistência.

[…] Esse simplismo excessivo que é conduzido a discussão fiscal pode ser nocivo para as políticas como um todo. O aumento do salário mínimo foi a principal política de redução de pobreza e desigualdade no Brasil durante mais de uma década. Se parar de ter aumento do salário mínimo, a pergunta é: vai colocar o que no lugar? Ou vai parar de ter responsabilidade social? Vai parar de tentar reduzir pobreza e desigualdade? Tem que ser explícito e dizer: ‘olha, nós concluímos que já reduzimos a pobreza demais, a desigualdade demais, e agora é hora de controlar o fiscal’. Pode ser, mas tem que assumir a responsabilidade política disso. Eu quero ver quem vai assumir. Porque quem fizer isso vai perder a eleição. E o que vem depois? O ultra populismo de violência, segurança etc.”

Marcelo Medeiros tem razão em se preocupar com o risco cada vez mais iminente de erosão dos pilares protetivos dos direitos sociais no orçamento geral da União, a despeito do 36º aniversário da nossa Constituição Cidadã. Isso porque, logo depois das eleições municipais deste ano, tenderá a ser pautada uma agenda de revisão das opções de arrecadação e das despesas, sobretudo das obrigatórias, a pretexto de “salvação” do Novo Arcabouço Fiscal. Todavia aquilo que é objeto de ajuste primeiro normalmente sofre maior restrição fiscal, enquanto o que se posterga tende a ganhar espaço proporcional à medida da realocação das outras opções de receita e/ ou despesa.

Como há diferenças temporais e correlações de força entre quem ganha e quem perde a partir das matérias que devem ser ajustadas, é preciso assumir e endereçar de forma legítima o conflito distributivo quanto à ordenação de prioridades do que deve ser alvo de ajuste. Nesse contexto, urge indagar e claramente escolher: o que vem primeiro? O que pode esperar? Qual é o lugar de cada qual na fila dos ajustes possíveis?

Em relação às vinculações que amparam os direitos sociais, ainda que haja certamente meios como aprimorá-las, o foco não pode ser o da mera redução em termos proporcionais.

No piso em educação e no Fundeb, por exemplo, é preciso tornar a execução orçamentária dos recursos vinculados mais aderente ao planejamento educacional, mas não se pode falar em reduzir o financiamento da educação básica, sem enfrentar o fato de que ainda há quase 1 milhão de crianças fora das creches (pelo critério mais tímido da demanda manifesta e não o da busca ativa que potencialmente ampliaria esse déficit para até 2 milhões de vagas.

Tampouco se pode esquecer da reduzida oferta de vagas em horário integral na rede pública de ensino. Como podemos alfabetizar as crianças na idade certa se sequer as séries iniciais do ensino fundamental são ofertadas no horário integral?

Na saúde, há gargalos de gestão relevantes como o excesso de hospitais de pequeno porte, a falta de controle da produtividade e até mesmo da carga horária dos médicos, a perda da memória do serviço com o troca-troca de comissionados, a lenta digitalização dos dados e a inexistência de sistema de custos no SUS, mas também aqui não há margem para redução de custeio, já que o envelhecimento da população e a pressão pela incorporação das inovações tecnológicas (demandada até mesmo em juízo) pressionam o financiamento da política sanitária.

A despeito de tais falhas de gestão que precisam ser saneadas urgentemente, não há dinheiro sobrando na saúde e na educação que comporte redução imediata de parâmetros de custeio, sem o sacrifício dos respectivos planos setoriais. Vale lembrar que, em ambas as políticas sociais, há demanda reprimida; filas de espera; passivos judicializados; restos a pagar computados no piso, mas ainda pendentes de processamento e, por vezes, sem correção monetária; omissões regulamentares, entre outras frustrações de alcance do seu regime jurídico, a exemplo da falta de correção monetária da tabela SUS e dos incentivos pactuados federativamente.

Especificamente na saúde, há doze anos é aguardada a regulamentação critérios de rateio para fins de repartição federativa das obrigações pactuadas no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite, na forma do artigo 17 da LC 141/2012. Em igual medida, na educação, há décadas falta regulamentar a noção de custo aluno qualidade, prevista na LDB, no PNE e tb mais recentemente na CF, após a EC 108/2020 inserir o parágrafo 7⁰ no artigo 211 da Constituição.

O que deve ser alvo de ajuste primeiro

O debate de por onde começar as estratégias de ajuste fiscal não é neutro. Há inúmeros impasses que demandam enfrentamento primeiro, antes do constrangimento/redução de custeio dos direitos sociais.

Como exemplo, precisamos pensar uma reforma das finanças públicas que enfrente a baixa escala dos serviços públicos essenciais prestados em uma federação tão pulverizada com tantos municípios com menos de 5 mil habitantes.

Também é preciso rever o regime jurídico de gastos em prol dos militares ativos e inativos, bem como de suas famílias, os quais têm escolas próprias, sistema de proteção social com saúde de excelência e inatividade remunerada estatutária (que assegura paridade e integralidade, sem limite de idade mínima), estruturas de justiça e ministério público especializados extremamente onerosos e regras de elegibilidade muito benéficas. Não é sem razão que os militares tentam, a todo tempo, tutelar a democracia assimétrica e arbitrariamente.

As renúncias fiscais e a transição do mercado de trabalho são tão importantes para pensar o regime geral de previdência social, quanto a garantia de que o piso dos benefícios previdenciários não seja inferior ao salário mínimo, porém o foco preferencial de ajuste recai sobre o último. Também têm sido apresentadas estratégias de contenção das despesas obrigatórias, que são potencialmente litigiosas, a exemplo da proposta de “corte sumário” de benefícios, sem um devido processo legal, discutida aqui.

Aliás, não é demasiado lembrar que já houve sete reformas previdenciárias desde 1988, muitas delas sobre o regime próprio de previdência social dos servidores civis, assim como houve várias alterações sobre o regime geral de previdência social, sem que se tenha alterado estruturalmente o caráter fortemente deficitário do regime de proteção social dos militares. Eis a razão pela qual o próprio Tribunal de Contas da União, recente e claramente, apontou a necessidade de se iniciar o debate de uma nova reforma previdenciária no Brasil a partir dos militares.

Falta de coordenação entre as políticas fiscal e monetária

Outro importante eixo de reflexão sobre o conflito distributivo contido nas opções de ajuste fiscal reside na falta de coordenação entre as políticas monetária e fiscal.

A velocidade e a intensidade da taxa básica de juros não são neutras em termos distributivos. Tampouco é neutra a meta de inflação fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que impõe um parâmetro mais rigoroso a um custo social e economicamente alto. Vale lembrar que o Banco Central deve cumprir quatro objetivos legais após o advento da LC 179/2021: além do controle da inflação, deve buscar o fomento ao pleno emprego, a suavização dos ciclos econômicos e a estabilidade do sistema financeiro.

Os juros altos, a meta de inflação proporcionalmente muito baixa e a inicial pretensão ousada de entregar um superávit primário em 2025 (após toda a perda de credibilidade do teto e o pós-pandemia) constrangem a atividade econômica, quando o ritmo da estabilização de preços e do ajuste fiscal poderia ser mais suave, sobretudo no horizonte do pós-Orçamento de Guerra.

Ainda que a meta de resultado primário de 2025 tenha sido revista no PLDO-2025, tal fato bastou para o mercado precificar juros mais altos, suscitar risco de abismo fiscal e especular com o câmbio, como se estivéssemos em pior situação que a Argentina.

Caso o ajuste fiscal e a estabilização monetária fossem mais suaves, no sentido de diferidos temporalmente, tenderia a haver um menor comprometimento para as contas públicas e para o nível de emprego na economia, até porque o parâmetro de sustentabilidade das contas públicas possui não só numerador (DBGG), como também denominador (PIB).

A opção por subir rapidamente a Selic de 2% para 13,75% ao ano em 2021, contrasta, por exemplo, com a pressão inflacionária trazida pela política de paridade de preços de importação dos combustíveis fósseis e a distribuição de dividendos em até cerca de R$ 200 bilhões/ano feita pela Petrobras naquele mesmo período, como se pode ler aqui.

Se o Brasil tivesse adotado a solução de alguns países europeus de tributar os ganhos extraordinários das petrolíferas durante a pressão de preços havida no período pandêmico, tal opção seria menos fiscalmente regressiva e mais saudável para a trajetória da dívida pública. Afinal, tributação também pode ser um mecanismo de gestão de liquidez.

A manutenção da taxa Selic em patamar elevado e sua recente elevação, com a concomitante e paulatina redução da inflação, faz com que haja a expansão dos juros reais. Com isso, o país é alçado à segunda posição no mundo em juros reais, atrás apenas da Rússia, em tal perfil de gasto regressivo.

O avanço das despesas financeiras a partir da escalada dos juros reais ocorre sem que, a rigor, o cenário externo ou interno justifique tal opção, salvo as “expectativas” autointeressadas de risco fiscal e inflacionário dos agentes superavitários da economia que se beneficiam desse processo decisório relativamente opaco, fiscalmente ilimitado e muito suscetível a capturas. Falta um devido processo da política monetária até para balizar e, quiçá, rever a fixação da taxa básica de juros a partir das expectativas de cerca de 170 analistas consultados no Boletim Focus pelo Banco Central.

Aliás, Fábio Terra e Larissa Dornelas têm ponderado corretamente já há alguns anos que, ainda que o Brasil obtivesse resultado nominal equilibrado, a um custo socioeconômico alto (reduzindo veloz e amplamente as despesas primárias), tal circunstância não garantiria a estabilização da dívida pública brasileira, porque a liberdade irrestrita de atuação do Banco Central para operar a política monetária poderia, a qualquer tempo, desajustar a trajetória da dívida pública. Eis uma dimensão de equidade que falta ao debate: há piso de remuneração das aplicações financeiras atrelado à Selic e há hedge cambial, cujos custos fiscais sequer são trazidos à pauta.

Ao fim e ao cabo, a desigualdade é uma escolha orçamentária

Não estamos falando aqui de soluções maniqueístas, mas de sintonia fina e ajustes complexos. Ordenação de prioridades é o grande desafio das finanças públicas brasileiras, que deve trazer consigo clareza da distribuição no tempo das escolhas governamentais, sob pena de acirramento da desigualdade escravocrata que marca o país há séculos.

A poucos dias do aniversário de 36 anos da Constituição Federal de 1988, precisamos qualificar os gastos públicos a partir do núcleo dos programas de duração continuada do plano plurianual e das despesas obrigatórias não suscetíveis de contingenciamento da lei de diretrizes orçamentárias, porque ali reside o tamanho constitucionalmente necessário do Estado brasileiro.

O ponto de partida para a nossa reflexão é compreender o que precisa ser feito, sem ter que pautar, apriorística e formalmente, limites mínimos e máximos. A resposta central passa pelo fortalecimento do planejamento e não pelo ajuste linear para fazer a Constituição caber em regras míopes e rapidamente disfuncionais, porque incapazes de lidar com a realidade.

Ao longo dos últimos anos, temos experenciado a superposição de regras fiscais rígidas demais, que paradoxalmente fomentam exceções ad hoc. Cada vez mais se avolumam fugas ao regime jurídico administrativo e afrontas ao princípio da unidade orçamentária, a exemplo do que se sucede com a PEC 65/2023 que quer transformar o Banco Central em empresa estatal não dependente; com a pretensão de excluir do respectivo limite as despesas de pessoal das organizações sociais que manejam grande parte da execução das atividades e serviços de saúde e com o regime orçamentário ainda impreciso do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Ou pensamos as contas públicas sistemicamente, inclusive contendo as burlas hermenêuticas, ou efetivamente tendem a ser alvo de ajuste apenas as despesas sociais que amparam os cidadãos mais vulneráveis. Na ausência da compreensão íntegra de como as prioridades orçamentárias podem densificar ou, a contrário senso, frustrar o cumprimento intertemporal da nossa Constituição Cidadã, a próxima rodada de ajuste provavelmente recairá, de novo, sobre os mais fracos e colherá, como resultado, ainda maior desigualdade.

Élida Graziane Pinto é professora da Fundação Getúlio Vargas e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.

Artigo publicado em:

https://www.conjur.com.br/2024-out-01/36-anos-da-cf-ordem-do-ajuste-fiscal-altera-o-produto-da-desigualdade

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