“Subsidiariedade” e “corporativismo”, instrumentos da regressão social


Quando hoje discutimos a luta contra o imposto sindical é oportuno buscar suas raízes históricas e verificar como se relaciona a outras políticas que visam a destruir a independência das organizações construídas pelos trabalhadores.

O imposto sindical é instrumento clássico do sindicalismo de colaboração de classes ou “corporativista”, tal como estabelecido no Brasil. Ele é inseparável da chamada “unicidade”, ou seja, o direito do Estado impor aos trabalhadores qual sindicato deve representá-los.

Nessa discussão, portanto, o que está em jogo é o direito democrático dos trabalhadores se organizarem num terreno independente dos patrões e do seu Estado. Esse direito  é incompatível com o imposto sindical e a unicidade, como também com outras políticas, ditas “participativas” e que também começam a chegar ao serviço público federal.

O texto a seguir é de outubro de 2003 e foi elaborado a partir da leitura de boletins do Acordo Internacional dos Trabalhadores (AcIT). Ele busca contribuir para desenvolver essas reflexões.

Edison Cardoni – Diretor do Sindsep-DF

 

“Etnias” e “comunidades” ao invés de nações. “Oficinas” ao invés de indústrias. “Tribos”. Um certo ar pré-capitalista, medieval mesmo, paira sobre os ditos “fóruns sociais mundiais”.

Não é casual. As idéias basilares desses “fóruns” têm suas raízes em doutrinas estruturadas ainda na Idade Média, no século XIII, pelo dominicano Tomás de Aquino.

Na origem, “corporativismo” era a defesa das fechadas corporações formadas pelos que exerciam um mesmo ofício. Mas a palavra adquire um significado muito diferente quando transformada em conceito político.

A questão chave é a negação da luta de classes. Para a igreja, não existem antagonismos de classe nas sociedades mas tão somente interesses ligeiramente contraditórios. Onde e como eles podem ser solucionados?

Para encontrar a resposta é preciso partir do dogma segundo o qual cada membro da igreja seria um átomo do corpo místico de Cristo. Transferindo esse dogma para a sociedade temporal, cada classe ou camada social deveria encontrar seu lugar como parte de um mesmo “corpo”. Cada membro de uma sociedade profissional seria uma pessoa integrada numa “comunidade de interesses” que, por sua vez, seria associada a outras comunidades, de outras profissões e ofícios, todos, cada um em seu lugar, unidos para realizar o “bem comum” no quadro de um Estado total, onde seriam suprimidos os conflitos de classe.

Toda essa construção ideológica já existia antes do surgimento do capitalismo mas foi muito bem aproveitada pelos patrões modernos nas suas incessantes tentativas de subordinar os trabalhadores e suas organizações aos interesses dos patrões.

Não por acaso, foi o fascismo italiano e o nazismo alemão que mais longe levaram a implantação dessa “comunidade de interesses”. No Brasil, a estrutura sindical imposta por Getúlio Vargas foi inteiramente copiada do fascismo italiano e dominou a vida sindical por décadas. Ela somente veio a ser deslocada -mas não totalmente abatida- com a fundação da CUT, em 1983.

Seu objetivo é superar a luta de classes em nome do suposto “bem comum” a trabalhadores e patrões. Todos seriam membros da “comunidade de interesses”, embora uns continuem possuindo os grandes meios de produção e, portanto, concentrando a riqueza e outros tenham apenas a sua força de trabalho.

É exatamente por isso que os “fóruns” se intitulam “espaços da sociedade civil”. Não há distinção de classe. Trabalhadores ou patrões, todos são indistintamente participantes, membros de alguma “comunidade”, que se associa a outras para obrar pelo “bem comum”.

Mas o que é o “bem comum”? Quem o determina? Aqui o “princípio da subsidiariedade” joga seu papel. De acordo com ele, uma comunidade superior não deve interferir na “vida interna” de uma comunidade inferior. Deve deixar que essa comunidade inferior exerça suas “competências” no limite daquilo que ela é capaz de resolver, com o objetivo de “harmonizar” as relações e colocar o conjunto dessa comunidade inferior a serviço do que é principal, do essencial, do “bem comum”, da comunhão dos interesses de todas as comunidades. A comunidade superior, então, se ocupa dos assuntos gerais que a inferior não é capaz de alcançar.

O conceito de democracia daí decorrente, modernamente denominado “democracia participativa”, não se constrói de baixo para cima, mas de cima para baixo. A decisão sobre o essencial, sobre o que é o “bem comum”, é tomada nas cúpulas, sendo a forma de sua aplicação delegada para as esferas inferiores.

Por exemplo, uma esfera superior decide que 60% do orçamento federal deve ser destinado para o pagamento da dívida externa. Isso vai estabelecer um limite para os orçamentos estaduais e municipais. Essa seria a diretriz comum, sobre a qual um município não teria como se pronunciar pois escapa à sua “competência”. Uma vez estabelecida aquela diretriz, a “participação popular” é chamada a decidir sobre as migalhas que sobram do orçamento, no município, na região, no bairro.

A “participação popular” decide o que não será feito uma vez que as verbas não são suficientes para o atendimento de todas as demandas, o que, naturalmente, gera conflitos. Mas integrando patrões e trabalhadores no nível mais próximo das decisões a tomar, sempre no quadro do “bem comum” previamente fixado, no caso o pagamento da dívida externa, as contradições de interesses e os antagonismos de classe são contidos nessa “esfera inferior” e suprimidos por essa “harmonização” forçada, eficiente para manter a exploração.

Em nome, então, de que a continuação da política atual é inevitável, os direitos dos trabalhadores e dos povos são destruídos e os sindicatos e os partidos independentes não teriam mais razão de ser. A própria democracia seria suprimida num processo de regressão social.

Mais amplamente, a “globalização” seria  uma realidade universal e inevitável. A partir dela, tudo seria estruturado. Não havendo como evitá-la ou combatê-la, os “fóruns sociais” se integram às engrenagens da “globalização” para fazer “outra globalização”, mais “humana”, “ética”, ou até “democrática”.

Assim se explica a insistência dos organizadores desses “fóruns” em estabelecer uma “ponte” com os “ricos” do fórum de Davos. “Outro mundo é possível” desde que seja respeitada a propriedade privada dos meios de produção. Assim se explica a naturalidade com que os “fóruns sociais” aceitam se organizar com generosas verbas dos estados, da Fundação Ford, de ONGs financiadas pelo Banco Mundial e pela União Européia.

Edison Cardoni (Diretor do Sindsep-DF), a partir da leitura de textos publicados no boletim do Acordo Internacional dos Trabalhadores (AcIT)

print

Compartilhar: