Guerra total: massacre de civis

PAULO SÉRGIO PINHEIRO


O que esperar nos próximos dias? Nada ou muito pouco, a não ser a intensificação da dança diplomática de visitas a Jerusalém e a Ramallah


GAZA TEM a mais alta densidade demográfica do mundo: mais de 4.000 pessoas por km2. Cerca de 1,5 milhão de pessoas numa área de 360 km2, imprensadas entre o mar e as fronteiras com Israel e Egito.

Em julho de 2005, em missão da ONU, visitei Israel e percorri de carro pelo interior toda a faixa desde a cidade de Gaza até Rafah. Voltei pela costa, desde a muralha de ferro marrom, qual uma escultura de Richard Serra, na fronteira com o Egito, visitei os campos de refugiados da guerra de 1967, mais espremidos ainda, em frente à praia. Puro engodo bombardeios aéreos israelenses com “precisão cirúrgica”. Impossível evitar vítimas civis como “dano colateral”. Não há para onde escapar.

Em pouco mais de uma semana, 512 palestinos foram mortos. Um quarto das vitimas, segundo a ONU, é de civis, mulheres e crianças. Os feridos já são mais de 2.000 -e os hospitais não dão conta das amputações.

Trinta e um soldados israelenses foram feridos nos ataques por terra e quatro civis israelenses foram mortos por foguetes de grupos do Hamas.

A desproporcionalidade entre a guerra total de Israel e os ataques de foguetes do Hamas ou a resistência à ocupação israelense -dos dois lados crimes de guerra sendo cometidos contra civis- fica patente, apesar do bloqueio à entrada de qualquer jornalista ocidental: o ocupante não quer testemunhas do massacre.

Israel, ao fechar os acessos da fronteira de Gaza há meses, descumpre suas obrigações como potência ocupante e pune coletivamente a população civil. O sistema de água e esgoto beira o colapso, pois os bombardeios destruíram as linhas de eletricidade e há meses não há combustível para gerar energia. Em flagrante descumprimento das convenções de Genebra e seus dois protocolos, estão sendo sistematicamente arrasados hospitais, ambulatórios e escolas, e mulheres e crianças são aterrorizadas.

Apesar de 30 caminhões com víveres e medicamentos terem sido autorizados a entrar em Gaza nos últimos dias, dificílimo fazer chegar esses estoques à população pela ausência de corredores humanitários.

A oposição dos Estados Unidos a um cessar-fogo e a um mero comunicado de imprensa ou declaração do presidente do Conselho de Segurança da ONU confirma esse apoio escancarado a uma das partes do conflito.

Entre os países árabes, há enorme divisão de posições em relação ao Hamas. O emir do Qatar há pouco propunha um cessar-fogo, dizia que “os horrores ocorrendo na faixa de Gaza obrigavam os líderes das nações árabes a se moverem” e clamava para a necessidade uma cúpula árabe para uma tomada de posição consequente.

Quanto à Europa, desde a eleição do Hamas, foi incapaz de ter iniciativas autônomas em relação ao governo Bush. Some-se a inação do enviado especial do quarteto para a Palestina ocupada (Rússia, EUA, União Europeia, ONU), Tony Blair, que nunca pôs os pés em Gaza. Apesar de a atual presidência tcheca da União Europeia atestar que a guerra deflagrada por Israel é “defensiva”, a França condena o ataque por terra e o Reino Unido a deplora (o estoque de verbos diplomáticos é inesgotável!).

Na pasmaceira habitual da comunidade internacional, releve-se o firme repúdio do governo brasileiro à brutalidade e à desproporcionalidade da ofensiva de Israel contra Gaza.

Está demonstrado que o não-reconhecimento das eleições legitimas (referendadas por Jimmy Carter) que levaram ao poder o Hamas e sua classificação como movimento terrorista foram decisões equivocadas.

Amadorístico foi o apoio exclusivo dos EUA e da Europa ao Fatah e ao presidente Mahmoud Abbas, na Cisjordânia ocupada, na esperança de que a população de Gaza deixasse de apoiar o Hamas. Essa política desastrada de isolamento do Hamas transformou Gaza num enclave condenado a condições de vida a cada dia mais semelhantes aos bantustões do regime do apartheid sul-africano.

O que se pode esperar nos próximos dias? Nada ou muito pouco, a não ser a intensificação da dança diplomática de visitas a Jerusalém e a Ramallah, sede da Autoridade Nacional Palestina. Como pano de fundo, bombardeios, o avanço da invasão por terra (e mar), a reocupação, massacre de civis, mais foguetes do Hamas, a caçada letal aos líderes do Hamas (e o trucidamento de suas mulheres e crianças) e mudança de regime em Gaza dissimulada. Tudo deverá continuar até 20/1, quando tomará posse o presidente Obama, do qual se poderia esperar ao menos uma lamentação pelas perdas civis. Trágico começo de ano.

PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 64, é professor-adjunto de relações internacionais da Brown University (EUA), pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência da USP e membro da Comissão Teotônio Vilela. Foi secretário de Estado de Direitos Humanos no governo FHC.


Fonte: artigo publicado na Folha de São Paulo de 06.01.09

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