É importante discutir que modelo de regulação queremos para o país, diz Marcos Pinto

PEC de autonomia financeira do BC foi conduzida de maneira ‘açodada’, diz Marcos Pinto, que defende reforma em modelo de supervisão

Por Lu Aiko Otta e Guilherme Pimenta — 05/08/2024 

É preciso tomar cuidado para “não pavimentar o caminho da vaca”, disse ao Valor o secretário de reformas econômicas do Ministério da Fazenda, Marcos Pinto, referindo-se à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 65/2023, que dá autonomia orçamentária e financeira ao Banco Central (BC), em discussão no Senado. 

Na avaliação dele, o risco ao se aprovar a matéria é constitucionalizar uma estrutura de supervisão do mercado financeiro que pode não ser a mais adequada para o país, pois se trata de um modelo que vem sendo abandonada mundo afora desde os anos 1990. A mudança incluída na Constituição dificultaria aprimoramentos futuros. Na sua visão, a PEC do BC foi conduzida de maneira “açodada”. “Não podemos constitucionalizar algo sem antes discutir qual o melhor sistema que devemos ter no país. Até porque existem outros sistemas no mundo que se mostram à frente do nosso, em termos de regulação financeira, que podem produzir resultados melhores”, considerou. 

A Fazenda defende um modelo diferente, chamado “twinpeaks”. Nesse sistema, em lugar das várias agências reguladoras que há hoje no país – uma estrutura preservada pela PEC – a ideia é ter apenas dois super-reguladores. Um ficaria focado em questões prudenciais e regulatórias e outro, nas condutas de mercado e no consumidor. 

Essa proposta reformula a atuação de: Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Superintendência de Seguros Privados (Susep) e, em um ponto a ser decidido, Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc). São, respectivamente, as agências do governo que hoje, regulam o sistema financeiro, o mercado de capitais, os seguros e a previdência privada. 

As discussões de bastidor em torno dessa proposta e seus principais pontos foram revelados com exclusividade pelo Valor no último dia 17. Dada a complexidade do mercado e a necessidade de preparar os reguladores para as novas atribuições, a ideia é implementar o “twin peaks” de forma faseada, comentou o secretário. Uma das primeiras etapas seria reforçar a CVM e o Banco Central com mais recursos e com a realização de concursos públicos. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Como funciona o modelo dos “twin peaks” nos outros países e por que ele é importante? 

Marcos Pinto: No mundo, até a década de 1990, o padrão era ter uma série de reguladores financeiros distintos por produto. No começo dos anos 2000, o padrão mudou e a iniciativa foi reunir todos os reguladores em um só, para evitar arbitragem regulatória entre produtos. O exemplo clássico disso foi o regulador britânico. Ainda no começo dos anos 2000, a Austrália tentou um modelo diferente, que é esse modelo dos “twin peaks”. Depois da crise [financeira de 2008], a Inglaterra fez uma grande revisão do seu sistema regulatório e entendeu que devia seguir o modelo australiano. 

Valor: Por quê? 

Pinto: Além de evitar a arbitragem regulatória, garantir que as duas principais funções desses reguladores fossem atendidas. 

Valor: Que funções? 

Pinto: De um lado, a regulação do aspecto prudencial, que é focada na solidez das instituições. De outro, proteger os investidores e os tomadores de crédito do sistema financeiro. Requer normas de transparência e também, sobretudo, cuidado para reprimir condutas abusivas. Então, de um lado, há um regulador muito focado em economia, em contabilidade, auditoria e solidez e, do outro lado, um regulador mais focado em aspectos, eu diria, éticos e jurídicos de conduta no mercado. 

Valor: A receptividade à proposta parece muito positiva até agora. 

Pinto: Gostei muito da frase do Armínio [Fraga, ex-presidente do Banco Central, em entrevista ao Valor no dia 18 de julho], dizendo que esse é o “padrão ouro” da regulação financeira. É para esse lugar que diversos países estão migrando: a Holanda, a África do Sul, a Bélgica, a Nova Zelândia. “Uma das primeiras etapas seria reforçar a CVM e o Banco Central com mais recursos”

Valor: Mas estamos hoje no modelo antigo. Qual a vantagem de mudar? 

Pinto: A primeira é que hoje distribuímos forças entre vários órgãos reguladores, quando poderíamos ter uma sinergia muito grande entre eles. Hoje, temos uma situação em que todos os nossos órgãos reguladores trabalham com limitações de pessoal e de recursos financeiros. Precisamos reforçá-los orçamentária e tecnicamente. Acho que o modelo “twin peaks” é uma boa forma de fazer isso. 

Valor: O projeto dos “twin peaks” é um “plano B” para a PEC do Banco Central? 

Pinto: Compartilhamos da preocupação que motivou a PEC, que é assegurar ao Banco Central, como regulador do sistema financeiro, os recursos e o pessoal necessário para enfrentar os desafios. Esses desafios não são pequenos. Mas, se vamos partir para uma mudança constitucional, temos que ter muito cuidado para não pavimentar o caminho da vaca. 

Valor: Caminho da vaca? 

Pinto: Não pavimentar o caminho da vaca. Quero dizer que não podemos constitucionalizar algo sem antes discutir qual o melhor sistema que devemos ter no país. Até porque existem outros sistemas no mundo que se mostram à frente do nosso, em termos de regulação financeira, que podem produzir resultados melhores. 

Valor: Parece ser bem complexo. 

Pinto: Não é um processo que vai acontecer do dia para a noite. Experiências bem-sucedidas de caminhar para um modelo dos “twin peaks” ou mesmo para um modelo de regulador único foram feitas passo a passo, com o tempo necessário para o fortalecimento das instituições, para que elas possam absorver todas as novas competências. 

Valor: Conversando com a CVM, o que ouvimos é que não se deve dar uma Ferrari na mão de uma pessoa que não sabe dirigir. 

Pinto: Acho que é perfeito, é corretíssimo esse diagnóstico. Eu diria, inclusive, que embora a situação do Banco Central tenha chamado a atenção por causa da propositura da PEC, os órgãos reguladores que enfrentam os maiores desafios em termos de pessoal e orçamento são a CVM e a Susep. 

“O orçamento da CVM é o mesmo há bastante tempo, e o mercado brasileiro de capitais cresceu”

Valor: Apesar de arrecadarem bastante com taxas. 

Pinto: Ambos são superavitários, recolhem mais taxa do que gastam, e ainda assim têm orçamentos congelados. O orçamento da CVM é o mesmo há bastante tempo, e o mercado brasileiro de capitais cresceu exponencialmente. A mesma coisa vem acontecendo na Susep. Então, é importante fazer esse trabalho de preparação dos órgãos. Isso tem que ser encarado como uma política de Estado, até porque não vai poder ser executado ao longo de um período de quatro anos. 

Valor: E como começaria esse processo de preparação? 

Pinto: A discussão da PEC do Banco Central trouxe à tona um assunto que está em fase de desenvolvimento. É preciso realizar conversas mais profundas com os órgãos, com o Banco Central, com a CVM, com a Susep. Detalhes que não são tão pequenos precisam ser acertados. É preciso discutir a forma de coordenação entre os dois reguladores no futuro. Isso é um aspecto muito importante na discussão internacional: como coordenar as atividades. Aqui no Brasil temos um órgão meio sui generis, que pode nos ajudar muito nisso, que é o Conselho Monetário Nacional. 

Valor: Vai demorar, então? 

Pinto: Precisamos de tempo também para fazer o fortalecimento dos órgãos. Por exemplo: a CVM não tem como abarcar hoje mais funções do que já tem. Seria necessário um concurso para ter mais funcionários e mais recursos. Acredito que esse seja o caso também, em alguma medida, do Banco Central. 

Valor: E a Susep? 

Pinto: A Susep não tem nem o aspecto de autonomia que há na CVM e no Banco Central. É um regulador que tem uma legislação ainda mais antiga. 

Valor: Então, começaria com um concurso, muito provavelmente? 

Pinto: Acho que o processo seria o seguinte: primeiro, chegar a um acordo, após muita conversa, e desenhar o modelo corretamente. Na sequência, fazer o trabalho legislativo, mas acertando as competências dos dois órgãos, qual vai ser o processo de coordenação, qual a forma de financiamento. Mundo afora, o modelo mais adotado é o de financiamento por meio de taxas de fiscalização, que é o modelo adotado na Susep e na CVM. A própria lei daria prazos, passos a ser seguidos ao longo do tempo de forma planejada: concursos, transferência gradual de competências entre as instituições e assim por diante. O modelo mais adotado é o de financiamento por meio de taxas de fiscalização”

Valor: Como fica a Previc [Superintendência Nacional de Previdência Complementar] nesse projeto? Vai entrar? 

Pinto: Depende muito da visão do setor. Tem países em que o regulador dos fundos de pensão fechados ficou fora e tem países em que ele foi incorporado. É uma questão que precisa ser debatida. 

Valor: Há mesmo uma ideia de inicialmente incorporar a Susep ao Banco Central?

Pinto: Essa é uma das possibilidades. Faz sentido porque a principal parte da regulação do setor de seguros é uma regulação prudencial e de solidez. Existe também uma relação muito próxima dos setores de seguros com o setor bancário. E aí você tem um grande ganho de sinergia e de qualidade de regulação muito relevante nisso. 

Valor: Queria voltar à questão dos concursos. Uma das queixas apresentadas para justificar a PEC do BC é a perda de pessoas porque os salários são baixos. Como pensam em encaminhar essa questão? 

Pinto: Olha, a sensação que eu tenho de todos esses órgãos reguladores é que eles têm perdido pessoas muito mais para a aposentadoria do que para o mercado. É óbvio que todos têm que receber salários compatíveis com as funções que desempenham. Um dos principais pontos aqui é assegurar, sim, a competitividade dos salários deles, mas também ter certeza de que têm o pessoal necessário para fazer frente às suas missões. E, além disso, que eles tenham um orçamento para realizar o trabalho, que depende cada vez mais de tecnologia da informação. 

Valor: Pode exemplificar?

Pinto: No Banco Central, o grande exemplo é o desenvolvimento de sistemas como o Pix e o open finance. No caso da CVM, hoje em dia há sistemas de inteligência artificial que permitem verificar padrões de negociação para prevenir prática de insider trading, por exemplo, que são muito importantes e que a CVM devia ter. Ela conta com sistemas, mas não tão avançados quanto poderiam ser. 

Valor: Há ideia de dar autonomia financeira e um regime jurídico que permita pagar salários mais altos nesses órgãos? 

Pinto: Acho que essa é uma discussão que tem que ser feita junto com o Ministério da Gestão e também com o Tesouro. O princípio do orçamento único é muito caro para fins de responsabilidade fiscal. Isso precisa ser debatido também com a sociedade. 

Valor: Então, a autonomia financeira do Banco Central, que é um dos pontos que tem lá na PEC, é uma coisa a ser conversada. 

Pinto: Exatamente. 

Valor: Que outras restrições a Fazenda tem à PEC? 

Pinto: Olha… Eu acho que falta debate. Acho que o assunto foi conduzido de maneira açodada. A sociedade precisa entender tudo o que está em jogo aqui. Que diversas agências reguladoras têm dificuldades semelhantes às do Banco Central. E quais as consequências da eventual aprovação da PEC. Mas eu queria destacar outro ponto. 

Valor: Qual? 

Pinto: Contrariamente ao modelo do “twin peaks”, tem um país que fica ainda no modelo de reguladores setoriais: os Estados Unidos. Isso acontece lá, acredito eu, por razões históricas e políticas. 

Valor: Como assim? 

Pinto: Para dar um exemplo: eles não fizeram nem a junção da comissão que regula derivativos com a SEC [Securities and Exchange Commission, equivalente à CVM brasileira]. E a principal razão para isso é que elas são supervisionadas por comitês diferentes no Senado e na Câmara. E essas questões dificultam a movimentação política. Os comitês são uma coisa muito importante dentro do Congresso americano. 

Valor: Pode detalhar mais a proteção aos consumidores no novo modelo? 

Pinto: A inclusão bancária tem aumentado, e isso tem que vir acompanhado de medidas que promovam a transparência e a coerção de práticas predatórias a consumidores financeiros. E essa é uma área em que hoje, no Brasil, temos uma certa confusão regulatória. 

Valor: Como é aqui? 

Pinto: Tem o Código de Defesa do Consumidor, tem o Banco Central com algum papel na área, mas restrito. Precisamos avançar. Da mesma forma em que hoje a CVM assegura para o investidor a transparência nos produtos que ele está comprando, o regulador de condutas asseguraria a transparência para o consumidor de produtos de dívida para o tomador do crédito, a transparência na operação, e coibiria práticas predatórias. 

Valor: Para isso, será necessário transferir funcionários do Banco Central? 

Pinto: Esse é um detalhe administrativo do modelo. Mas essa é uma área pequena dentro do Banco Central. A competência para a proteção do consumidor vem sendo exercida pelos órgãos de defesa do consumidor. 

Valor: Como melhoraria a proteção aos consumidores, na prática? 

Pinto: Hoje temos uma relativa dificuldade de acesso a informações. Vou citar um exemplo: cartão de crédito. No [programa de renegociação de dívidas] Desenrola, grande parte das dívidas era de cartão de crédito. A informação existe, mas não tem sido passada da maneira adequada para o consumidor, para que entenda a operação que está contratando e os riscos que está correndo ao contratar um empréstimo no crédito rotativo, que está com taxas médias de 400% ao ano. Para fazer um paralelo: hoje, para comprar um produto financeiro, o investidor tem que preencher um questionário de ‘suitability’ [adequação de perfil], tem que dar consentimentos especiais e tudo. Para fazer uma dívida com 400% ao ano não precisa fazer nada. Basta não pagar a fatura. 

Valor: Hoje já temos instituições que poderiam impedir essas práticas. Por que não funcionam? 

Pinto: Temos avançado bastante. No ano passado, o CMN fez junto com o Banco Central uma bela reformulação nas regras de cartão para dar bastante transparência. Essas regras estão entrando em vigor agora. Foi feita inclusive uma medida no Congresso, o chamado muro inglês, que impede que a fatura mais do que dobre em virtude de juros e encargos. 

Valor: E onde há resistências ao projeto dos “twin peaks”? 

Pinto: Depois que o assunto se tornou público, só vimos manifestações positivas. Acho que é uma tarefa institucionalmente difícil e longa, mas os benefícios são muitos. 

Valor: Se há pontos ainda a discutir na formulação do projeto, quer dizer que ainda vai demorar para chegar ao Congresso. Tem alguma estimativa de prazo? 

Pinto: Não. Temos muitas etapas ainda a percorrer. A discussão foi adiantada com a discussão da PEC. 

Valor: Só para ficar bem claro: qual que é o risco de pavimentar o caminho da vaca? 

Pinto: Sem discutir se essa estrutura atual de regulação é a mais adequada, vamos constitucionalizar a estrutura atual de regulação. Isso vai tornar muito mais difíceis eventuais mudanças futuras. Antes de mexer na Constituição, se é que isso é necessário, é importante discutir qual modelo de regulação que queremos no país. Tem críticos do modelo “twin peaks” mundo afora, mas nenhum deles aponta o modelo de muitos órgãos reguladores divididos por produto como o melhor. 

Valor: E o modelo de regulador único? Funcionaria para o Brasil? 

Pinto: Eu tenho a sensação de que o modelo de regulador único vai deixar uma das funções primordiais desatendida. Essa foi a conclusão a que chegou a Inglaterra depois da crise, e por isso eles adotaram o modelo australiano do “twin peaks”.

Fonte:

https://valor.globo.com/financas/noticia/2024/08/05/e-importante-discutir-que-modelo-de-regulacao-queremos-para-o-pais-diz-marcos-pinto.ghtml

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