A comparação entre o BCB e outros bancos centrais

Segundo o presidente do Banco Central do Brasil, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 65/2023 foi introduzida com o objetivo de modernizar o Banco Central, alinhando sua estrutura e funcionamento a um alegado “padrão internacional”.

Essa afirmação sugere que a proposta busca equiparar o Banco Central do Brasil aos bancos centrais de outras nações, no que diz respeito à sua autonomia. Quais nações? É questão central, mas não tratada.

Autonomia, no contexto dos bancos centrais, significaria que a condução da política monetária obedeceria exclusivamente a critérios técnicos e, portanto, seria uma política a ser exercida por fora do poder político estabelecido.

O aprofundamento dessa autonomia seria a independência que se refere à possibilidade de o banco central possuir orçamento próprio, separado do orçamento geral do país.

Essa independência financeira seria necessária para o Banco Central operar sem depender de recursos do governo central, o que, alegadamente, no caso particular do Banco Central do Brasil, resolveria um suposto problema de falta de orçamento para implementar um nível de remuneração adequado à qualificação técnica de seu corpo funcional (questão que trataremos em outro boletim), bem como viabilizar projetos internos.

Comparações imprecisas

É importante ressaltar que cada país possui seu próprio conjunto de conceitos jurídicos nos quais se insere a lei que define um banco central como entidade jurídica. Esses conceitos são moldados pelas legislações nacionais, que variam significativamente e, obviamente, são expressos em seus respectivos idiomas nacionais.

Portanto, comparar os regimes jurídicos dos bancos centrais ao redor do mundo, como o Banco Central do Brasil, o Federal Reserve dos Estados Unidos, o Banco Nacional da Suíça e o Banco do Japão, é uma tarefa complexa e muitas vezes imprecisa.

Cada uma dessas instituições opera sob um arcabouço legal único, refletindo as especificidades e necessidades de seu respectivo país.

No Brasil o artigo 5º do Decreto-Lei nº 200/67 define autarquia como:

I – Autarquia – o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada.

Por outro lado, define-se empresa como uma organização civil cujo propósito é a produção de bens ou serviços, estruturada de maneira a otimizar a eficiência e a qualidade de suas operações.

Ela é caracterizada por ser propriedade de uma pessoa física ou jurídica (ex: conglomerados), o que implica que seus recursos, responsabilidades e lucros são controlados e administrados por seus proprietários ou acionistas, garantindo uma orientação clara e uma gestão focada em alcançar objetivos econômicos específicos.

Critérios utilizados

Para comparar bancos centrais, foram utilizados dois critérios principais: a divisão (ou não) do capital social em ações, com o respectivo pagamento de dividendos, e, no caso de haver divisão do capital em ações, se o governo possui 100% do controle acionário ou não.

Esses critérios permitem avaliar a estrutura financeira e a governança dos bancos centrais, diferenciando aqueles que operam mais próximos de modelos corporativos (ditos “empresas de estatuto especial”), com acionistas e distribuição de dividendos, daqueles que são integralmente controlados pelo governo e não têm acionistas privados (ditos “autarquia”). Assim, temos:

Classificação segundo existência de ações e pagamento de dividendos:

Sim! (empresa com estatuto especial)Não (autarquia)
CanadáInglaterra
AustráliaBrasil
Europa 
Suíça 
Japão 
Estados Unidos 

Classificação segundo o controle do governo:

Capital misto (empresa com estatuto especial)100% governo (autarquia)
SuíçaInglaterra
JapãoBrasil
Estados UnidosCanadá
 Austrália
 Europa

De fato, cada banco central é uma entidade única, definida por uma legislação nacional específica que estabelece sua estrutura e funções. Exemplos disso são o Bank of Japan ACT, que rege o Banco do Japão, o Federal Reserve ACT, que regula o Federal Reserve nos Estados Unidos, e a Lei 4595/64, que instituiu o Banco Central do Brasil.

Cada um é moldado pelas necessidades e contextos econômicos e políticas públicas de sua nação, resultando em uma diversidade de modelos e práticas ao redor do mundo.

Atribuições

Ainda, um banco central precisa responder a questões que o caracterizam e refletem suas prioridades e desafios específicos. Um dos principais dilemas é o eterno conflito entre a política fiscal e monetária. Esse conflito surge da necessidade de equilibrar as metas de inflação e crescimento econômico, frequentemente influenciadas pelas políticas fiscais do governo.

Outro dilema central é a relevância do pleno emprego nas decisões de política monetária. Alguns bancos centrais, como o Federal Reserve, têm um mandato dual que inclui tanto o controle da inflação quanto a maximização do emprego, enquanto outros se focam mais estritamente na estabilidade de preços, como o Banco Central do Brasil.

Apesar de o parágrafo único do artigo 1º da lei 179/2021 estipular como objetivo do Banco Central do Brasil zelar pelo pleno emprego, este só deve ser considerado caso o objetivo fundamental, a saber, assegurar a estabilidade de preços, tenha sido alcançado:

Parágrafo único. Sem prejuízo de seu objetivo fundamental, o Banco Central do Brasil também tem por objetivos zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego.

A condução da política monetária, especificamente a definição da taxa básica de juros (como a SELIC no Brasil) e sua implementação através das operações de mercado aberto, é uma atribuição essencial e universal de todos os bancos centrais, sendo, portanto, uma característica definidora de qualquer banco central, independentemente de sua estrutura ou mandato específico.

No entanto, os bancos centrais podem desempenhar diversas outras atividades além da condução da política monetária, como a normatização do sistema financeiro, a supervisão de instituições financeiras e a gestão de liquidações. São exemplos de bancos centrais que desempenham essas quatro grandes funções, cuja gama de responsabilidades é viabilizada pelo modelo de autarquia, o Banco Central do Brasil (BCB) e o Banco da Inglaterra. Assim, o Banco da Inglaterra é aquele que mais se aproxima do Banco Central do Brasil e vice-versa, em relação às atribuições e regime jurídico.

Particularmente, as atividades de supervisão e liquidação, que são essenciais para a integridade e estabilidade do sistema financeiro, exigem estabilidade no cargo para permitir aos servidores agir contra a vontade dos dirigentes das instituições financeiras, quando necessário.

Tal estabilidade viabiliza o exercício das atividades de supervisão com eficiência e necessária segurança jurídica, blindando os supervisores de interferência por parte dos supervisionados. Desta forma, as decisões da supervisão tenderão a ser tomadas com base na segurança e na integridade do sistema, e nunca sob pressões externas ou internas.

Supervisão

Nos bancos centrais que desenvolvem as atividades de supervisão e liquidação, como no Brasil e na Inglaterra, segue-se o modelo de autarquia. É interessante destacar que o Banco da Inglaterra foi fundado em 1694 como uma empresa privada, sendo nacionalizado (transformado em autarquia) em 1946, devido, justamente, à necessidade de garantir a estabilidade dos servidores da supervisão e ao entendimento de que a condução da política monetária é uma atividade típica de estado. Por conclusão, o Banco da Inglaterra seguiu o caminho oposto daquele proposto pela PEC 65/2023!

Por outro lado, bancos centrais que seguem o modelo de empresa com estatuto especial, como os do Canadá, Austrália, Suíça, Japão e Estados Unidos, não garantem a mesma estabilidade para seus trabalhadores. De fato, esses bancos centrais não desenvolvem atividades de supervisão e liquidação. Em vez disso, focam-se principalmente na condução da política monetária e na normatização do sistema financeiro.

Nesses países, a supervisão fica a cargo de instituições apartadas dos respectivos bancos centrais nacionais: no Canadá a supervisão é realizada pela Superintendent of Financial Institutions (OSFI), na Austrália pela Australian Prudential Regulation Authority (APRA), na Suíça pela Swiss Financial Market Supervisory Authority (FINMA), no Japão pela Financial Services Agency (FSA) e Deposit Insurance Corporation of Japan (DICJ) e nos EUA pela Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC) e Office of the Comptroller of the Currency (OCC).

É importante observar que nos EUA, o Federal Reserve é formado por 12 bancos centrais (regionais) sob regime de empresa com estatuto especial, com 100% do capital sob controle privado (nas mãos dos bancos comerciais regionais), que pagam dividendos anuais a seus controladores privados.

Todavia, o sistema de bancos centrais regionais é comandado por uma autarquia, FED Board of Governors Headquarters, sediada em Washington DC, no edifício “Eclles”, contando com 7 diretores (1 acumula a função de presidente), cujos salários são pagos pelo governo federal dos EUA, portanto, todos funcionários públicos. A opção da maior economia da história pela sede em regime de autarquia decorre do entendimento que a condução da política monetária é uma atividade típica de estado.

É perceptível que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 65/2023 tem como referência o Banco Nacional da Suíça. Esse banco central adotou o modelo de empresa com estatuto especial, uma escolha fortemente guiada pelo setor bancário robusto e influente na Suíça.

Diferentemente dos bancos centrais que operam sob o modelo de autarquia, onde os lucros são direcionados ao tesouro nacional, o Banco Nacional da Suíça distribui seus lucros aos acionistas. Esse modelo de empresa com estatuto especial reflete uma estrutura de governança onde o lucro gerado pela instituição beneficia diretamente os investidores privados, ao invés de contribuir para o orçamento público.

A promulgação da Lei 179/2021 já conferiu autonomia ao Banco Central do Brasil. Por outro lado, a completa separação da administração federal, proposta pela PEC 65/2023 implica, na prática, a criação de um quarto poder, totalmente independente do poder executivo.

Não existe modelo único

É importante reforçar que não existe um modelo internacional único a ser seguido quanto à estrutura jurídica de um banco central, cada país desenvolve sua própria abordagem, adaptada às suas necessidades e contextos específicos, sendo a escolha, em 1964, pelo modelo de autarquia para o BCB, reflexo da singularidade da trajetória brasileira nesse campo.

Para além de todas essas considerações jurídicas e, por assim dizer, técnicas, há um elemento definidor a respeito dos modelos de banco central que, normalmente, é desconsiderado, a saber: o acesso dos agentes econômicos de cada país ao mercado mundial e o peso de sua economia vis-à-vis às potências mundiais que, finalmente, ditam as regras do jogo.

O fim da convertibilidade dólar-ouro

Não por acaso, a onda de modernização dos bancos centrais – quando o Banco Central da Inglaterra foi nacionalizado – ocorreu na esteira da Conferência de Breton Woods, que criou o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e estabeleceu o sistema monetário internacional ancorado no dólar, mas preservando sua relação com o padrão-ouro.

Esse sistema foi totalmente subvertido com a decisão dos Estados Unidos, em 1971, de colocar fim à convertibilidade dólar-ouro. Essa decisão afetou todos os países, mas muito mais intensamente aqueles que, como o Brasil, necessitam de investimentos de capital estrangeiro para financiar seu desenvolvimento.

Dessa forma, sem estar ancorado na análise desses elementos definidores, perde completamente a validade o argumento que defende a PEC 65/2023 sob o pretexto de “alinhar o Brasil às melhores práticas internacionais”.

Seção Sindical do Sindsep-DF no Banco Central

9 de junho de 2024

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