A autonomia do Banco Central é compatível com a Constituição?

Redação Conjur

https://www.conjur.com.br/2023-fev-16/senso-incomum-autonomia-banco-central-compativel-constituicao

16 de fevereiro de 2023

Resumo: resta saber se o presidente do Banco Central é o superego da nação

O tema “independência ou autonomia doBanco Central” está na ordem do dia. O novogoverno faz fortes críticas à atuação do BC.Afinal, a taxa de juros no Brasil é o dobro dainflação, desbordando do que ocorre com asdemais taxas do mundo (vide EUA e UniãoEuropeia).

Para além da economia, o que o Direito podedizer? Gilberto Bercovici foi quem melhortratou do assunto no artigo Sobre o BancoCentral Independente [1]. O artigo tem de serlido. Por juristas, economistas, jornalistas ejornaleiros.

Bercovici reconstrói a história institucional dofenômeno. Mostra o fator “privatização dosbancos estaduais” ocorrida na década de 90como elemento primordial da centralizaçãoda autoridade monetária no Banco Central.Diz também que o problema desse processode reestruturação da política monetária foi ofato de que a recomposição da capacidadede intervenção pública se esgotou natentativa de controle sobre os gastospúblicos. Fala também da bizarrice que foi aequiparação da função de presidente doBanco Central do Brasil à de ministro deEstado em 2004. Isso gerou uma certaconfusão institucional: um presidente deautarquia federal vinculada ao Ministério daFazenda (artigo 8º da Lei 4.595/1964setorna equiparável a ministro de Estado, ouseja, com as mesmas prerrogativas defunção daquele que supostamente é seusuperior hierárquico na administraçãopública, o ministro da Fazenda.

Mas vinha coisa mais complexa pela frente:a tão falada autonomia do Banco Central(Lei Complementar 179, de 24 de fevereirode 2021). Pela nova legislação, o presidentee a diretoria do Banco Central passam a termandatos fixos e não coincidentes com omandato do presidente da República, queperde o poder de nomear e demitir osocupantes dessas funções quando bementender.

Bercovici chama a essa entidade um”Frankenstein” na estrutura administrativabrasileira: uma autarquia não subordinadaao presidente ou a nenhum ministro, umórgão que paira no ar, sem vínculos, semcontroles.

Esse é o busílis.

O Supremo Tribunal teve a chance de darum fim nesse Frankenstein. Porém, na AçãoDireta de Inconstitucionalidade ADI 6.696,decidiu pela constitucionalidade.

Passa um pequeno período de tempo esurgem fatos novos. Taxa de jurosestratosférica que coloca em polos opostos onovo presidente eleito e o presidente doBanco Central.

O ponto que se põe é: qual seria odispositivo constitucional que daria suporte àlei que concede autonomia ao BancoCentral? Ao argumento de que ele deve serautônomo para estabilizar a economia, cabeperguntar: a golpe de caneta monetária opresidente do BC tem mais capacidade doque toda a equipe econômica de umpresidente da República? A Constituiçãoestabelece quem deve cuidar da economia.E nisso está inserida a estabilidade e aresponsabilidade social para com apopulação.

Examinando o texto constitucional, temosque ali estão determinadas as normas paraa consecução de políticas públicas quedevem visar a erradicar a pobreza e fazerjustiça social (por exemplo, artigo 3º). Issosem considerar o próprio cerne daquilo quechamamos de “Constituição Econômica”.

Parece que esquecemos que a nossaConstituição tem o claro perfil dirigente. ACF/88 é compromissória e dirigente, filha dasConstituições dirigentes do segundo pós-guerra, mormente se pensarmos em paísesperiféricos como o Brasil.

Lembro que nos anos 90 cunhei a tese deuma CDAPP  Constituição DirigenteAdequada para Países Periféricos, na esteirada já então criticada Constituição Dirigentetratada pelo constitucionalista J J GomesCanotilho.

Dizia eu, então, no que fui acompanhado porGilberto Bercovici, Martonio Barreto Lima eMarcelo Cattoni, que a nossa Constituição, apar das críticas ao dirigismo original feitopelo próprio Canotilho, continuava dirigente[2]. Mais: de minha parte, a tese do dirigismoconstitucional continua válida enquanto nãoresolvermos o triângulo dialético propugnadopelo próprio Canotilho, inspirado em JohanGaltung (falta de segurança, pobreza e faltade igualdade política). A Constituição aindavale. E nela nada consta sobre BancoCentral independente ou autônomo. BancoCentral aparece oito vezes no texto daConstituição. Nenhuma vez sequer seinsinua a sua autonomia ou independênciapara além do poder do presidente daRepública — basta ver que o regimecontinua sendo o presidencialista.

Trata-se de analisar o papel do Estado naeconomia. E o do governo. Enquanto nãoresolvermos esses problemas (pobreza,segurança e igualdade política), aindaprecisamos de forte atuação estatal para aconsecução desses objetivos constitucionais.Isto é, aqui no Brasil a Constituição quedirige não morreu. E por isso precisamos deuma Constituição que diga o que fazer. Queresgate compromissos. Que resgate aspromessas modernas até hoje incumpridas.E a nossa diz claramente como fazer isso.Quer queiramos, quer não queiramos. AConstituição é um fato. Ou ela vale apenasquando se fala em imunidades e isenções?

Não parece adequado à Constituição umorganismo como o Banco Central autônomo,cujo presidente, sem mandato popular, semlegitimidade, estabeleça as diretrizes dodesenvolvimento econômico. Porque, nofundo, é isso que acontece. O Banco Centralmanda mais que o presidente.

O Brasil é uma República representativa.Presidencialista. Elege-se o presidente paraelaborar políticas públicas. Que devem sercompatíveis e obedecer a Constituição. Ora,se o presidente do Banco Central resolvertriplicar a taxa de juros em relação ao índiceinflacionário (duplicada já está) e isso gerarmais pobreza, quer dizer que a atuação dopresidente do Banco Central éinconstitucional, porque a Constituição diz ocontrário. Pior: a culpa e responsabilidadeserão debitadas na conta de quem foi eleitopresidente. Da República. E não do BancoCentral. Sei que parece uma platitude dizerisso. Mas por aqui há que se dizer o óbvio —que se esconde no anonimato.

Tem-se a impressão de que estamos nomundo de paroxismos. Ocorre uma disputaquase fratricida nas eleições. Quase ocorreuum golpe. Elege-se o presidente. E quandoele quer fazer cumprir, para o bem e para omal, sua plataforma de governo, o presidentedo Banco Central atua como superego danação.

Resta saber se o Banco Central pode tanto aponto de ser esse superego, espécie de grilofalante do sistema político-econômico.

Numa palavra final, retomo Bercovici, paradizer que, para além de toda a questãoconstitucional, o problema da”independência” do Banco Central é menosjurídico e essencialmente político. A perguntaque deve ser feita é: Banco Centralindependente de quem?

Ao que parece, o BC é independente dosistema político e de todo e qualquer controledemocrático — com o que se volta à questãoconstitucional.

Por último, alguém dirá que essa questão jáestá decidida pelo STF. Respondo, dizendo:mas o STF não disse que o modelo anteriorera inconstitucional. Consequentemente,então, na pior das hipóteses, a Constituiçãoadmitiria mais de uma possibilidade deconfiguração. Além disso, o fato de o STFdizer por último não significa que estejasempre certo. E decisões não são eternas.

Isto é, o presidente da República podeentender, e o Congresso também, que essemodelo de “independência” do Banco Centralcriou um problema do ponto de vista políticoe econômico.

Ou, ironicamente, a possibilidade de reverdecisões que afetam estruturalmente a vidadas pessoas seria inconstitucional?

Por isso, diante do problema criado, cabealterar o modelo de Banco Central. Issoporque a alteração do modelo não éinconstitucional. Ao contrário, tornar-se-iaadequado ao modelo constitucionalcompromissório e dirigente inscrito naConstituição do Brasil.

[1] In Revista Fórum de Direito Financeiro eEconômico. ano 11 – nº 21 | mar./ago. 2022

[2] Recomendo a leitura deste artigo que trata daConstituição Dirigente Invertida, em que cito os trêsautores: https://www.conjur.com.br/2016-out-27/senso-incumom-rumo-norundi-bordo-cdi-constituicao-dirigente-invertida

Texto publicado em:

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