13 de dezembro | Dia do Marinheiro: João Cândido, o almirante negro
Por Luís Henrique
Treze de dezembro é uma data errada. Hoje se comemora o “Dia do Marinheiro”, em homenagem ao Marquês de Tamandaré, que nasceu nesse dia em 1807. Esse almirante branco, nascido Joaquim Marques Lisboa e criado visconde em 1860, em retribuição aos seus serviços ao Império, que comandou uma marinha escravocrata, que colocou a sua força à disposição do Imperador para resistir e combater contra a proclamação da república, foi sempre um oficial da marinha, nunca um verdadeiro marinheiro.
Quem deveria ser homenageado não nasceu em 13 de dezembro, mas em 24 de junho de 1880. Também gaúcho, como o almirante branco, João Cândido Felisberto, filho de ex-escravos, ingressou na Marinha aos 14 anos de idade, como grumete. Numa época em que a grande maioria dos marinheiros era recrutada à força pela polícia, João Cândido foi uma exceção, tendo se alistado voluntariamente.
Inteligente e esforçado, João Cândido passou de aluno na Escola de Aprendizes de Marinheiro de Porto Alegre a instrutor na EAM no Recife. Depois, exerceu as funções de artilheiro, maquinista, faroleiro, sinaleiro, gajeiro, timoneiro em diversos navios, adquirindo um domínio completo do funcionamento dos navios de guerra. João Cândido chegou mesmo a prestar serviços de instrução a cadetes da Escola Naval, em 1908.
A escravidão foi abolida em 1888 pelo Império agonizante, mas os hábitos escravocratas permaneceram arraigados na sociedade brasileira (até hoje !), e a Marinha, a mais oligárquica das forças armadas brasileiras, não foi exceção. Os oficiais constituíam – como ainda hoje – um segmento privilegiado, formado na Escola Naval, para onde os latifundiários costumavam enviar seus filhos excessivos. Os marinheiros eram recrutados em sua maioria à força, pela polícia, como punição por pequenos delitos, como vadiagem. Numa sociedade em que os descendentes de escravos foram amplamente marginalizados, sendo alijados do mercado de trabalho, evidentemente a massa dos marinheiros era composta de homens negros.
E a oficialidade, tendo sido criada nas fazendas onde se utilizava mão-de-obra escrava, encarava os marinheiros como escravos, e os tratava como tal. Desse tratamento fazia parte a chibata – a punição por açoite, aplicada, à discrição dos oficiais, como penalidade para delitos e infrações cometidas pelos marinheiros, ou a eles atribuída. Não era a única condição aviltante; a péssima comida, a proibição de constituírem família, de estudar, também mostravam a disposição do oficialato a considerar os marinheiros como propriedade e não como seres humanos.
Com a proclamação da República, os castigos físicos na Marinha foram proibidos – mas a oficialidade encontrou rapidamente meios de contornar a proibição, e a prática continuou, tornando a proibição mais uma lei “para inglês ver”.
No início da República, uma corrida armamentista entre Chile e Argentina resultou na modernização da Marinha argentina, que a Marinha brasileira não pôde, de início, acompanhar, dados os problemas econômicos do país. Quando a situação econômica melhorou, a Marinha brasileira tratou de se modernizar, para ser capaz de se contrapor à então superior Marinha argentina. Desse esforço de melhoria fez parte a encomenda de novos navios na Inglaterra, e missões navais foram enviadas para acompanhar a construção destes.
João Cândido e outros muitos marinheiros participaram dessas missões. Na Europa, entraram em contato com a realidade das marinhas dos países centrais, onde os castigos físicos já haviam há muito sido abolidos, e obtiveram mais informações a respeito da rebelião a bordo do encouraçado russo Potemkin, em 1905. Também tiveram oportunidade de conhecer o movimento operário inglês, até porque a construção dos navios, que acompanhavam, foi obstaculizada por uma greve.
A continuidade dos castigos físicos na Marinha, sua incompatibilidade com o discurso nacionalista que serve de base à ideologia das Forças Armadas, a experiência na Europa, levam os marinheiros a se organizarem e exigirem das autoridades a cessação da violência escravocrata a bordo. Mas as autoridades se empenham no tradicional jogo de empurra, concordando em tese com a reivindicação mas nada fazendo para implementá-la.
Com isso, os marinheiros decidem se rebelar. Planejam a tomada dos principais navios da Armada, para ameaçar o governo com o bombardeio do Rio de Janeiro e o afundamento dos navios não envolvidos na rebelião (o planejamento segue de perto o motim do Potemkin). A data é marcada para 25 de novembro de 1910; mas o brutal chicoteamento do marinheiro Marcelino Rodrigues Meneses – 250 chibatadas, não interrompidas sequer pelo desmaio da vítima – em 21 de novembro, precipita a revolta no dia 22.
Os marinheiros tomam o controle dos encouraçados Minas Gerais e São Paulo e do cruzador Bahia – os melhores navios da Marinha na época – e se posicionam na Baía de Guanabara para ameaçar a cidade e o governo. João Cândido é escolhido comandante da esquadra rebelada. A reivindicação que enviam ao presidente da República deixa bem clara a continuidade que viam entre as práticas da Marinha e o regime escravocrata:
Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira.
Para surpresa do governo, da imprensa e dos oficiais, os navios amotinados, sob o comando de João Cândido, evoluem com segurança e maestria nas suas manobras. Daí o apelido de “Mestre-sala dos Mares”, que lhe é atribuído pela canção de João Bosco e Aldir Blanc. Mas o apelido mais famoso é “Almirante Negro”, que lhe foi dado na época pelo escritor, também ele negro, João do Rio, e que até hoje enfurece a Marinha.
Encurralado, o governo cede. A chibata é abolida, agora de fato. Nunca mais nenhum marinheiro foi chicoteado. Em 1911, uma reforma mais ampla das Forças Armadas melhora as condições de vida dos praças, não apenas da Marinha, mas também do Exército. E o governo concede anistia a todos os revoltosos. Mas trai vergonhosamente essa última promessa. Dias depois de encerrada a rebelião, os rebeldes são todos expulsos da Marinha, sem direito a vencimentos. Uma grande parte é aprisionada; 31 deles são enfiados em duas celas “solitárias” projetadas para um único prisioneiro – entre eles, João Cândido. E, a pretexto de “desinfetar” as celas, os oficiais da Marinha mandam jogar cal dentro delas. 29 revoltosos morrem assim, asfixiados pela cal. João Cândido é um dos sobreviventes.
Depois de dois anos na prisão, João Cândido é absolvido pelo Tribunal de Guerra. Absolvido, mas não perdoado, sobrevive, na miséria, até 1969, quando morre de câncer, sempre perseguido pela Marinha, que dificulta suas tentativas de encontrar emprego. O único apoio oficial que lhe é prestado vem do seu estado natal, cujo governador, Leonel Brizola, lhe concede uma aposentadoria especial.
O dia é errado, mas a homenagem deve ser certa: em vez do Marquês, homenageamos o verdadeiro marinheiro, João Cândido, o Almirante Negro, herói do povo e da abolição da chibata.
Sílvia Capanema___ João Cândido, revolucionário em vida e post-mortem: a relevância do líder da Revolta da Chibata. Brasil de Fato, 04 de maio de 2024 https://www.brasildefato.com.br/2024/05/04/joao-candido-revolucionario-em-vida-e-post-mortem-a-relevancia-do-lider-da-revolta-da-chibata
Anônimo__________ Revolta da Chibata, luta negra armada. Primeiros Negros
Marco Morel______ João Cândido, um almirante contra a chibata. Aventuras na História, 08/11/2018